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Às vezes o movimento constante parava. Provavelmente o ser que nos carregava estava cansado. Algumas paradas eram breves, outras demoravam bastante. Papai ficava furioso quando o bicho demorava demais para se recuperar, torturando-o até fazê-lo berrar. Os seres ao redor não pareciam em melhores mãos, pois também urravam sem parar.
Talvez por birra, houve um momento em que todos os bichos estacaram. Tudo o que se ouvia era o som áspero de suas respirações cansadas. A atitude deles acabou irritando as pessoas que, como papai, manuseavam suas entranhas. Os urros das feras ecoavam ao nosso redor, e nossa criatura esporadicamente respondia com violência.
A claridade ofuscante dos olhos de alguns deles entrava paulatinamente em meu campo de visão. A impressão era assustadora, como se os outros seres estivessem escaneando nosso hospedeiro, buscando alguma coisa em seu interior. Eu tremia só de pensar na hipótese de nós sermos o alvo desta busca.
Papai parecia cansado. Seus dedos tamborilavam inquietos sobre uma estrutura circular. Vez ou outra ele bufava, e emitia entre dentes sons inaudíveis. Eu sentia pena dele, mas não havia nada que pudesse fazer, preso àquela estrutura macia.
Pelas aberturas vedadas, eu pude ver uma outra espécie de criatura passar velozmente ao lado da nossa. Ela era bem menor, porém mais barulhenta. Ao contrário do nosso bicho, que me parecia um quadrúpede, este era claramente bípede.
Um homem de roupa preta estava no lombo desta outra besta. Suas mãos apertavam grosseiramente as orelhas do bicho, que protestava com rosnados furiosos. O homem parecia não ligar, talvez porque usasse uma estranha carapaça protetora sobre a cabeça, que deixava somente parte de seu rosto à vista.
Por um momento, pensei que papai talvez não fosse tão bom domador quanto àquele homem. Senão, ele certamente teria um invólucro parecido para ostentar em sua cabeça e proteger-lhe os ouvidos.
De repente, o enorme rebanho de seres metálicos voltou a andar lentamente. Passada a aglomeração, alguns bichos iam para um lado, outros para outro, e quando diminuiu o número de seres à nossa frente, a lentidão deu lugar a uma corrida veloz.
Papai parecia mais calmo. Isto se refletia no nosso hospedeiro, que corria alegre, sem mais emitir seus gritos medonhos. Neste passo, rapidamente chegamos em casa.
Presumo que papai tenha acariciado o bicho, que rapidamente se calou e pareceu dormir instantaneamente. Após sair pela orelha da criatura, papai felizmente lembrou-se de vir até mim e livrou-me da estrutura que me prendia. A mamãe abriu a porta e saudou-nos de braços abertos. Beijou-me afetuosamente, e conversou com papai.”
Sem conseguir extrair mais nenhuma informação depois disso, o analista, intrigado com a bizarra história, suspende a regressão, tirando o paciente do transe nostálgico. Em seguida, pergunta o final da história. O paciente, confuso, limita-se a dizer:
- Naquele momento eu não pude compreender a conversa. Hoje, sei que a pergunta de mamãe foi “como foi o seu dia”.
- E? – Emendou o analista, curioso.
- Após um longo suspiro, papai apenas disse “pegamos um congestionamento dos diabos”.
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